quarta-feira, 25 de junho de 2008

Relações Fortes

Já fui louca por este poema. Se ele fosse um homem, tinha-me apaixonado.


Conheci um homem que possuía uma cabeça de vidro.
Víamos - pelo lado menos sombrio do pensamento - todo o sistema planetário.
Víamos o tremelicar da luz nas veias e o lodo das emoções na ponta dos dedos.
O latejar do tempo na humidade dos lábios.
E a insónia, com seus anéis de luas quebradas e espermas ressequidos.
As estrelas mortas das cidades imaginadas. Os ossos [tristes] das palavras.

A noite cerca a mão inteligente do homem que possui uma cabeça transparente.
Em redor dele chove. Podemos adivinhar uma chuva espessa, negra, plúmbea.
Depois, o homem abre a mão, uma laranja surge, esvoaça.
As cidades (como em todos os livros que li) ardem.
Incêndios que destroem o último coração do sonho.
Mas aquele que se veste com a pele porosa da sua própria escrita olha, absorto, a laranja.

A queda da laranja provocará o poema?A laranja voadora é, ou não é, uma laranja imaginada por um louco? E um louco, saberá o que é uma laranja? E se a laranja cair? E o poema?
E o poema com uma laranja a cair? E o poema em forma de laranja? E se eu comer a laranja, estarei a devorar o poema?
A ficar louco? [...] E a palavra laranja existirá sem a laranja?
E a laranja voará sem a palavra laranja?
E se a laranja se iluminar a partir do seu centro, do seu gomo mais secreto, e alguém a [esquecer] no meio da noite - servirá [o brilho] da laranja para iluminar as cidades há muito mortas? E se a laranja se deslocar no espaço- mais depressa que o pensamento, e muito mais devagar que a laranja escrita- criará uma ordem ou um caos?

O homem que possui uma cabeça de vidro habita o lado de fora das muralhas da cidade.
Foi escorraçado.
[E] na desolação das terras, noite dentro, vigia os seus próprios sonhos e pesadelos.
Os seus próprios gestos - e um rosto suspenso na solidão.
Onde mora o homem que ousou escrever com a unha na sua alma, no seu sexo, no seu coração?
E se escreveu laranja no coração, a alma ficará saborosa?
E se escreveu laranja no sexo, o desejo aumentará?
Onde está a vida do homem que escreve, a vida da laranja, a vida do poema - a Vida, sem mais nada - estará aqui? Fora das muralhas da cidade?
No interior do meu corpo?
ou muito longe de mim - onde sei que possuo uma outra razão...
..e me suicido na tentativa de me transformar em poema e poder, enfim, circular livremente.

Al Berto

Ninguém diria igual.

1 comentário:

Anónimo disse...

o poema é magnífico, se fosse uma mulher apaixonava-me por ela.